A Casa de David
Por: Luciana Chinaglia Quintão, fundadora e presidente da ONG Banco de Alimentos
Em abril de 2021 a ONG Banco de Alimentos completou 23 anos. Uma história de muitas conquistas e de muitos momentos – difíceis, intensos, alegres, emocionantes. Momentos de conhecimento e aprendizado que pavimentaram o nosso caminho diante de uma certeza incontestável: a necessidade de combater a fome e o desperdício de alimentos no país. Momentos únicos, como o que envolveu a Casa de David.
Eu tinha acabado de instituir a ONG Banco de Alimentos, ocupando um pequeno espaço na área da Turiassu Estúdios, em Perdizes (SP), onde eu trabalhava. Era preciso ligar as duas pontas – quem queria doar e quem queria receber. Éramos só nós, o “trio ternura”, como nos batizamos – a Suzete, nutricionista; o Walter, motorista, e eu. E uma Kombi!
Verdade que eu praticamente intimava os colaboradores do estúdio a ajudar, até o contador à época, e o advogado, que continua comigo até hoje. Mãos à obra, distribuímos 400 cartas para indústrias de alimentos situadas na cidade de São Paulo, com o objetivo de conseguir doações. Mas apenas cinco respostas vieram, nenhum quilo de alimento, só votos de boa sorte… Confesso que esta parte da doação foi bem difícil. Mas fui em frente, visitando mercados municipais para conversar com os donos das barracas, que foram mais receptivos. E assim começamos, com a distribuição de frutas, legumes e verduras.
E para quem distribuir? Se de um lado a doação era escassa, a demanda daqueles que precisavam receber era imensa. Choviam informações de amigos que conheciam entidades que atendiam pessoas em situação de vulnerabilidade para as quais os alimentos doados seriam altamente necessários. A demanda por alimentos era gigante, como sempre foi neste país, em que a fome é um problema secular.
A partir de uma série de visitas, organizamos a lista das entidades que iriam receber, construindo ao mesmo tempo toda a parte administrativa da organização. E chegou o dia da nossa primeira entrega, na Casa de David, que cuida de pessoas com deficiência intelectual, física e com autismo, na sua maioria carentes e abandonadas.
A ansiedade dominava o coração. A primeira visão, na chegada à entidade, foi da fragilidade daquelas pessoas, da sua condição difícil, de seus olhares alterados, sem barreiras, aproximando-se da gente, carentes de tudo. Fui conduzida para conhecer a enfermaria, onde ficavam os acamados. Entre eles, crianças e, entre elas, duas irmãs que me chamaram mais a atenção – tinham sofrido maus tratos, foram jogadas contra a parede e ficaram com dificuldades neurológicas.
Sabe quando você tem reações que nem você espera? Foi tudo muito forte. Comecei a tremer e tive uma crise muito forte de choro. Fiquei muito mal e fui para um canto do jardim para me recuperar. Não queria que vissem que eu estava chorando. E assim foi, a primeira entrega da ONG Banco de Alimentos. Poderia ter sido qualquer outra instituição, mas quis o destino que fosse a Casa de David. Foi realmente um batismo intenso.
Saí abalada mas com a sensação – na verdade com a certeza – de que havia aberto a porta da estrada que eu iria trilhar. Certeza também de que a gente precisa disseminar muito amor para poder doar, entender, ter empatia. O amor resolve tudo!
E a Casa de David, 23 anos depois, continua conosco – foi a primeira entre as 42 entidades que hoje assistimos continuamente, que atendem mais de 23 mil pessoas. Por meio do trabalho denominado Colheita Urbana, a ONG Banco de Alimentos busca alimentos onde sobra e leva onde falta, a fim de reduzir o desperdício de alimentos na indústria e no comércio, e distribuir o excedente para entidades sociais, minimizando os efeitos da fome e possibilitando a complementação alimentar de qualidade.
Obrigada Casa de David por iluminar o nosso caminho. Obrigada à Marlene Simoni Soares, fundadora que, como nós, enche o seu coração de amor para transformar o mundo para melhor.