Estudos recentes escancaram o problema da fome e do desperdício no Brasil, agravado com a crise provocada pela pandemia. Mas é importante lembrar: a fome é um problema secular no país. Josué de Castro, influente médico, professor universitário, cientista social e um dos maiores pensadores da geografia do Brasil, já escrevia em seu livro Geografia da Fome: A Fome no Brasil, publicado em 1946: “A fome não é mais do que uma expressão – a mais negra e a mais trágica expressão do subdesenvolvimento econômico. Expressão que só desaparecerá quando for varrido do país o subdesenvolvimento econômico, com o pauperismo generalizado que este condiciona”.
Para Josué de Castro, “o que é necessário por parte dos poderes públicos é condicionar o desenvolvimento e orientá-lo para fins bem definidos, dos quais nenhum se sobrepõe ao da emancipação alimentar do povo. É dirigir a nossa economia tendo como meta o bem estar social do povo”. Inconformada com a pobreza e com a desigualdade que via à minha volta, criei a ONG Banco de Alimentos em 1998, para combater a fome e o desperdício de alimentos. De lá para cá, e da época de Josué de Castro até o presente, na verdade falta muito, muito mesmo, para que a questão da fome, a necessidade mais básica do ser humano, seja resolvida no Brasil e no mundo.
Dados não faltam e mostram o agravamento da situação durante a pandemia. Segundo pesquisa da Rede PENSSAN – Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em dezembro de 2020, 116,8 milhões de brasileiros vivem em insegurança alimentar, sem acesso pleno e permanente a alimentos. Destes, 43,4 milhões (20,5% da população) não contam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estão passando fome (insegurança alimentar grave).
Estudo coordenado por pesquisadores brasileiros na Universidade Livre de Berlim, com o apoio da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade de Brasília, realizado entre agosto e dezembro de 2020, traz retrato igualmente desolador: 59,4% dos entrevistados em todo o país vivem em situação de insegurança alimentar, ou seja, com falta de alimentos para o suprimento de necessidades humanas básicas diárias. Nos dois levantamentos, a situação atinge principalmente alguns estratos da população brasileira: mulheres, pessoas de cor ou raça preta e parda, moradores das regiões Norte e Nordeste e de áreas rurais e domicílios com crianças e com menor renda per capita.
Houve iniciativas importantes ao longo do tempo que buscaram amenizar o problema, como a do sociólogo Herbert de Souza, Betinho, com a criação do Movimento Ação e Cidadania, Contra a Miséria e pela Vida; a ONG Amigos do Bem, de Alcione Albanesi; o programa Mesa São Paulo, do SESC São Paulo; a ONG Banco de Alimentos; o Programa Fome Zero e o Bolsa Família, entre outras ações. Mas falta muito, muito mesmo, para chegarmos perto de uma solução. A fome dói, exclui, mata e constitui-se em um abuso social, uma vez que impede o desenvolvimento físico e mental de um ser humano. Como destaco no livro Inteligência Social – A perspectiva de um mundo sem fome(s), não temos apenas a fome de comida, mas também de justiça, de amor, de transporte, de moradia e de educação.
Acredito que a questão não é apenas econômica mas de ordem política, respaldada por um grande pedaço do corpo social que, podendo fazer diferente, aceita o inaceitável. É importante que cada um de nós coloque em prática a Inteligência Social, com base em uma inteligência coletiva presente e atuante, tendo um olhar crítico em relação à realidade e consciência de seu papel dentro da sociedade.
Somos todos responsáveis pela construção do mundo à nossa volta. Em mundo cada vez mais interconectado, precisamos expandir a Inteligência Social para a sociedade de uma forma mais ampla, com todas as camadas que a compõem integradas e correlacionadas conscientemente, no intuito de criar um tecido social saudável, com mudanças de paradigmas políticos, econômicos, educativos, sociais e ambientais, para que seja possível construir uma sociedade mais evoluída, na qual a humanidade é o ponto principal.