Por Luciana Chinaglia Quintão
A cantora Elza Gomes da Conceição, mais conhecida como Elza Soares, e a escritora Carolina Maria de Jesus, além de serem mulheres negras, eram moradoras de favela, vítimas da violência, da pobreza e da fome. Eram mães preocupadas em manter seus filhos vivos, apesar de tudo, o que não foi totalmente possível. Foram sobreviventes de uma triste realidade brasileira que se arrasta por anos, alimentada pela cegueira e egoísmo de todos que, além de não se empenharem para mudar esse destino, ainda o alimentam. Elas foram pontos fora da curva que conseguiram mudar o seu destino e escancarar ao mundo a miséria que persiste em vitimar milhões de brasileiros. Quantas “Elzas e Carolinas” vamos ter até conseguirmos enxergar essas pessoas e realmente atingir uma sociedade justa, sem tanta desigualdade? E que não desperdice vidas e talentos?
Elza Soares acabamos de perder. Carolina Maria de Jesus faleceu em 1977. Em épocas distintas, ambas alertaram com sua arte para a questão da fome. Ao participar do programa Calouros em Desfile, em 1953, o apresentador Ary Barroso perguntou a Elza: “Menina, de que planeta você veio”?. Ela respondeu: “Do mesmo planeta que você, seu Ary. Eu venho do planeta fome”. Elza perdeu dois de seus filhos, com poucas semanas de vida, para a fome: morreram de desnutrição. Anos depois, em 2019, Planeta Fome tornou-se o título do 34o álbum de sua carreira. Elza levou sua música e a realidade brasileira para o mundo. Em 1999, a Rádio BBC a elegeu como A Voz do Milênio, dentro do projeto The Millennium Concerts.
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) nasceu em Sacramento (MG), em uma comunidade rural, de pais analfabetos, neta de escravos alforriados e totalmente sem posses. Na casa do seu avô de terra batida, havia só um prato. Em 1948 mudou-se para São Paulo, na favela Canindé, sobrevivendo como catadora de papel e ferro velho. Sozinha, com três filhos, enfrentou a miséria e, mesmo com pouca escolaridade, passou a registrar em um diário a pobreza, a fome e a humilhação do ser humano que vive em favelas. As anotações transformaram-se, com a ajuda do jornalista Audálio Dantas, no livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960). “Quando a fome vinha, a vontade de escrever crescia”, escreveu Carolina. “Começava a escrever às seis da tarde e amanhecia. Se eu pudesse comer, ficava calma. Mas enquanto não escrevesse muito, sentia uma aflição que me dava desespero.” Como Elza, Carolina também foi da favela para o mundo. Quarto de Despejo vendeu 100 mil exemplares apenas no primeiro ano; sua vida é tema do curta-metragem de produção alemã Despertar de um Sonho, que teve sua exibição proibida no Brasil em 1975, época da ditadura militar; em 1995, os professores José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine lançaram The Life and Death of Carolina Maria de Jesus, nos Estados Unidos.
Há muitas “Elzas e Carolinas” neste país, com vidas conduzidas pela fome e pela luta contra tantas fomes. Não deveria ser assim pois com certeza já podíamos ter um país muito melhor, muito mais avançado. Teimamos em continuar retrógrados, por senhores da verdade que de verdade não sabem nada, discutindo e brigando entre si ao invés de fazer as reformas necessárias para que o Brasil se desenvolva. Isto não é política de qualidade, é um querendo se impor ao outro sem o olhar puro da vocação original, a moral cidadã ou o conhecimento necessário para transformar a realidade, a fim de que brasileiros tenham autonomia para viver dignamente. O que acaba com a fome, com a violência, é o respeito, a verdade, a moral, a produtividade.
Temos hoje um país com 117 milhões de pessoas que vivem em estado de insegurança alimentar, sem garantias de que terão o que comer na próxima refeição. É isto que queremos? Um país que utiliza mal os seus recursos, que desperdiça talentos, que não sabe aproveitar o potencial de seus seres humanos. Um país multifacetado, desigual, pouco integrado com a população e com instituições que ainda não desenvolveram o olhar conjunto para os objetivos que deveriam ser comuns à nação? Até quando?
É urgente uma mudança de paradigmas: políticos devem servir e não serem servidos, assim como devem ser éticos e transparentes e legislar com justiça para todos. A economia não pode crescer a qualquer custo e prejudicar o meio ambiente, excluindo seres humanos do tecido social. A educação deve ser universal e voltada para o real conhecimento e para a paz. A sociedade civil precisa exercer a sua inteligência social coletiva e o seu papel de transformação para o mundo que desejamos ter. Só assim, “Elzas e Carolinas” poderão trilhar um caminho mais digno e mais justo.
*Luciana Chinaglia Quintão é fundadora e presidente da ONG Banco de Alimentos; autora do livro Inteligência Social – a perspectiva de um mundo sem fome(s).